As idéias weberianas permitem a compreensão da educação brasileira sob a perspectiva institucional pois exprime as características singulares do nosso processo de formação
Alonso Bezerra de Carvalho
Apropriar-se do pensamento clássico é um dos desafios que se coloca a quem pretende dar consistência e caráter inovador a suas pesquisas, mas tomar as idéias de um pensador como Max Weber é tarefa que nos provoca e nos entusiasma, isto é, nos leva a um bom exercício intelectual. Mais animador ainda quando as suas idéias nos conduzem a refletir sobre um tema que não encontramos de maneira clara em seus escritos: a educação.
Sabemos que a interpretação que Max Weber faz das ações e valores da modernidade influenciou sobremaneira o pensamento e a prática da cultura contemporânea. Ao estudar o processo de racionalização ocorrido no Ocidente, visto como elemento central do que é comumente definido como modernidade, Weber suscita discussões na área da ciência e, correlativamente, na educação, possibilitando a ampliação do nosso entendimento sobre qual o papel do conhecimento e do ensino.
De fato, Weber não escreve textos que tratam especificamente de educação, mas fornece indicações que contribuem para a formulação de tipologias pedagógicas. Há passagens, por exemplo, em que explicita qual deveria ser o papel do professor. Para Weber, o objetivo fundamental do educador é proporcionar aos alunos um conteúdo que incentive a reflexão própria, mas, para que isso aconteça, não basta somente estar atento ao conteúdo, mas também à maneira como este é transmitido. É preciso que o professor adote uma ética não-partidária na sala de aula, ou seja, que não exponha a sua opinião ao apresentar um conteúdo e, caso o faça, ter a honestidade de dizer que o está fazendo. É preciso incentivar o aluno a adotar uma opinião condizente com a sua compreensão, de modo que a posição “neutra” do professor permita que, também fora da sala de aula, o aluno tenha a capacidade crítica de refletir sobre o que observa, experimenta e decide. Somente assim a conduta do professor estaria condizente com o processo de racionalização de nossa cultura.
Essa questão é tratada com clareza numa conferência que proferiu para jovens alemães, publicada em Ciência e política: duas vocações. Para Weber, estariam errados os jovens que buscam no professor a figura de um “líder”, pois a cátedra acadêmica deveria ser ocupada somente por um professor. Enquanto o líder pretende ser um orientador nas questões que se referem à conduta prática, qual um conselheiro na política, o professor deveria abster-se de tal ocupação, reservando-se apenas a fazer “análise e formulações de fato”. O professor que se sente chamado a agir como conselheiro da juventude, a intervir nas lutas entre as concepções de mundo e posições partidárias, deveria fazê-lo fora da sala de aula, em lugar público, onde os seus oponentes não estão condenados ao silêncio.
Se não quisermos ser anacrônicos, faz-se necessário distinguir essas duas maneiras de existência, fato que encontramos, segundo Weber, no modo de pensar dos jovens americanos: “O jovem americano não tem respeito por coisa alguma, nem por ninguém, pela tradição ou pelo cargo público. A concepção que tem do professor que o enfrenta é: ele me vende seu conhecimento e seus métodos em troca do dinheiro do meu pai, tal como o verdureiro vende repolhos à minha mãe”. Jamais ocorreria a um jovem americano que o seu professor pudesse vender uma concepção de mundo (Weltanschauung) ou um código de conduta, o que o tornaria, neste caso, um treinador de futebol, isto é, um líder. “É a isso que o americano chama de ‘democracia’.”
Essa posição da juventude americana, vista por Weber como apropriada, está associada ao significado que a ciência teria adquirido na modernidade. A ciência moderna estaria destituída da capacidade de estabelecer qualquer pressuposição ou significado último, único e decisivo para a existência humana – o mundo teria sido despojado daquelas harmonias fictícias (a verdade universal, a natureza, a divindade e a felicidade) das quais se acreditava outrora estar constituído. Baseado nas regras da lógica e do método, o trabalho científico moderno não ofereceria maior conhecimento das condições de vida do homem como tradicionalmente fazia. Irremediavelmente especializado, impessoal e progressista, descartaria qualquer realização de resultados duradouros. O trabalho científico teria se tornado apenas um meio indispensável da eficácia técnica, do controle prático e da clareza conceitual segundo os propósitos colocados pelo homem.
Weber entende que não estamos mais em condições de provar cientificamente que essa ou aquela posição ou pressuposição é a melhor para uma ação específica no mundo. A razão para tal impedimento é que não teríamos mais um parâmetro de caráter universal que nos possibilite medir a validade do que a ciência pressupõe. Não temos um “ponto arquimediano”, com valor inquestionável e fundamental, de onde pudéssemos deduzir seu valor. No mundo moderno não encontramos mais um “pressuposto último”; ou seja, com Weber, aprendemos que se as ciências modernas não têm condições de legitimar, através de prova científica, seus pressupostos, não podem dar respostas que indiquem o sentido da vida dos homens. São técnicas, frias, instrumentalizadas; estão impossibilitadas de fornecer regras para a vida prático-moral, não constituem visões de mundo, o que demonstra que foram desencantadas, perdendo o caráter mágico-profético.
O tema da educação ou da pedagogia em Weber fica mais claro em sua análise da política, tanto como disciplina científica quanto como ação dos indivíduos. Como outras ciências (as históricas, exatas e naturais), também na ciência política não haveria elementos que possibilitassem o estabelecimento de valores de caráter universal. A política está, desse modo, deslocada na sala de aula, tanto no que concerne aos alunos quanto ao professor. No caso do professor, a política não deveria entrar na sala de aula, sobretudo quando o docente se interessa cientificamente pela política. O verdadeiro professor procuraria evitar impor qualquer posição política ao aluno, quer expressa ou sugerida, e precisa separar duas situações a fim de preservar sua integridade intelectual: a) “apresentar os fatos, determinar as relações matemáticas ou lógicas, ou a estrutura interna dos valores culturais” e b) “responder a perguntas sobre o valor da cultura e seus conteúdos individuais e à questão de como devemos agir na comunidade cultural e nas associações políticas”. Em outras palavras, uma coisa seria tomar uma posição política prática, por exemplo, num comício: ao falar de democracia, as palavras utilizadas “não são meios de análise científica, mas meios de conseguir votos e vencer os adversários; são espadas contra os inimigos”; outra coisa seria realizar uma análise científica em que, para continuar com o mesmo exemplo, a consideração da democracia significa examinar suas diversas formas, seu funcionamento, suas conseqüências, sua oposição às formas não-democráticas. Seria inapropriado a um professor empregar o mesmo procedimento em uma sala de aula.
O profeta e o demagogo não pertencem, portanto, à cátedra acadêmica. Mas, quando o professor julga não poder renunciar a avaliações de ordem prática, então deve transparecê-las aos seus alunos e, acima de tudo, a si próprio. Ou seja, deve distinguir com o máximo rigor os enunciados que exprimem um conhecimento empírico e os que exprimem juízos de valor, pois sempre que o homem de ciência introduz seu julgamento pessoal de valor, cessa a plena compreensão dos fatos.
A ciência moderna e a educação teriam como vocação buscar a verdade, compreender os fatos, determinar as relações matemáticas e lógicas dos acontecimentos. Ao apontar quais as razões fundamentais do significado que a figura do professor e do cientista adquiriram na vida cultural moderna (e porque o verdadeiro professor deveria se fazer menos como treinador de futebol e mais como verdureiro), Weber conclui que o mundo desencantado teria conduzido os vários pontos de vista, as mais diversas perspectivas e valores, a um conflito mútuo. Essa é a base da reflexão weberiana que considero importante para se pensar o tema da educação.
Weber considera que resta ao homem moderno enfrentar o destino com coragem frente às exigências do cotidiano e não ficar à espera de novos profetas e novos salvadores. Para tanto, seria necessário que cada um de nós encontre e obedeça ao demônio que controla os cordões de nossa própria vida, e nisto a ciência e o professor teriam algo a contribuir. Porém, como sugere o exemplo do jovem americano, não deveriam contribuir como treinadores de futebol, como líderes ou reformadores culturais, mas sim como verdureiros, que nos vendem suas verduras para que façamos delas o prato que melhor nos satisfaz. Garantir isso é garantir a liberdade.
Embora as reflexões até aqui expostas possam ser mais bem discutidas, é possível, a partir delas, pensar o Brasil e, mais particularmente, a educação. Weber nos oferece um conjunto de elementos que nos permite questionar em que medida nosso país pode ser considerado moderno. Como recurso metodológico, as idéias weberianas permitiriam compreender que tipo de organização social constitui um país que teve no seu processo de formação características fundadas em valores oriundos de uma base católica, enquanto a modernidade – o “‘espírito’ capitalista” – teria no ethos protestante sua fonte motivadora, mesmo que de maneira inesperada, como ele reconhece.
É verdade que não é possível transpor de maneira direta as análises formadas por outras perspectivas, porém podemos observar como a educação e os movimentos pedagógicos, sobretudo se olhados em suas grandes linhas, é o campo que no Brasil indica a ausência de uma passagem pelo processo de desencantamento do mundo, como definido por Weber. Em Raízes do Brasil, na esteira da metodologia weberiana, Sérgio Buarque de Holanda considera que a nossa formação cultural não foi marcada por um processo de racionalização, em que os indivíduos agem orientados por valores racionais, metódicos e disciplinares. Seríamos antes um povo constituído por um ethos que advém da intimidade e de um “personalismo exagerado”, o que nos conduz a privilegiar interesses pessoais. Essa constatação seria perceptível na maneira pela qual se estrutura o Estado: patrimonialista, em que os interesses dos seus dirigentes se sobrepõem aos interesses públicos. Ou seja, o Estado tornar-se-ia um patrimônio da classe dirigente. “Não seríamos propriamente um caso ocidental, uma vez que, aqui, o Estado, por anteceder aos grupos de interesses, mais do que autônomo em face da sociedade civil, estaria empenhado na realização de objetivos próprios aos seus dirigentes, enquanto a administração pública, vista como um bem em si mesmo, é convertida em um patrimônio a ser explorado por eles.”
As idéias weberianas servem de instrumento para a compreensão da educação brasileira sob a perspectiva institucional – principalmente a escola – ao nos fazer perceber em que grau ela exprime as características singulares do nosso processo de formação. Tentaremos ser modernos a qualquer custo, no estilo manifesto pela análise de Weber do mundo ocidental, desconsiderando a nossa própria “identidade”? Talvez uma maneira de realizar essa tarefa seja – no campo da educação – diagnosticar o verdadeiro papel que professores e alunos cumprem na escola, tendo o tipo idealdescrito por Weber como parâmetro primordial.
Ação social – Toda ação que leva em conta comportamentos e reações das pessoas de acordo com o ambiente e suas normas e costumes cotidianos exemplifica ações desse gênero, que Weber divide em quatro tipos: racionais, instrumentais, afetivas e tradicionais. Racionais são aquelas em que o indivíduo leva em conta seus valores e não pensa nas conseqüências, nem nos meios para atingir o objetivo. Instrumental é o oposto desta última. As afetivas são tomadas de acordo com a emoção, para expressar sentimentos pessoais. E, por último, as tradicionais são apoiadas na tradição de determinado grupo ou pessoa.
Alonso Bezerra de Carvalho é professor do departamento de Educação da UNESP (Assis) e autor do livro Max Weber: Modernidade, Ciência e Educação (Editora Vozes)